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Gramado: diretora e elenco de Cidade; Campo falam sobre construção do longa

Gramado (RS) — Cidade; Campo desembarcou no Festival de Gramado em seguida uma estreia de repercussão internacional na Berlinale e passagens nos EUA e Colômbia. O filme era uma das estreias mais aguardadas da competição e não decepcionou, mormente no número de conversas que gerou entre críticos e espectadores.

Para destrinchar um pouco o processo de construção do longa, o Metrópoles conversou com a diretora Juliana Rojas e as atrizes Fernanda Vianna e Bruna Linzmeyer.

Metrópoles: A construção deste filme se dá em duas histórias distintas. Aparentemente, não se conversam no sentido narrativo, só que combinam no sentido temático. O quanto você preferiu trabalhar isto no texto e fora do texto do filme?

Juliana Rojas: O filme sempre teve estas duas partes, uma depois da outra — inaugurar na cidade e depois ir pro campo. Porque é um filme também que fala sobre conexão com a ancestralidade, e a gente veio do campo. Eu não queria que tivesse uma conexão de personagens. Um personagem que atravessasse. Eu queria que se sentisse porquê um filme só pela temática e também por pequenos elementos. Que as partes se complementassem, dialogassem, tivessem rimas.

Tem um corpo sidéreo que vai se aproximando da Terreno e que também dá uma sensação de iminência de apocalipse. Tem o cavalo, os animais, a presença da floresta, pequenos gestos. Mas eu queria que, em qualquer momento, o universo de uma das partes se esbarrasse na outra. Portanto, aí tem essa cena que a Joana está trabalhando porquê diarista e ela vai num apartamento que está de mudança. Ele está esvaziado. Tem um bilhete, que é o bilhete que a Mara, a personagem da segunda segmento, deixou. E aí, buscando nos objetos, ela encontra uma foto da Flávia. E também, ela vê um vulto no espelho e que é o pai da Flávia. É o fantasma do pai da Flávia.

Portanto, eu quis colocar esses elementos que acabam ficando subliminares. Porque você, porquê testemunha, não tem porquê saber ainda o que significa. É um filme que, se você rever ele, você vai enxergar várias coisinhas que você não tinha visto na primeira vez.

 

Fernanda Vianna: Uma vez que a Juliana disse na coletiva, são pequenas pistas. Não tem uma coisa muito clara do que são essas duas histórias, que falam de imigração, que falam de superação, de se reinventar… Portanto, minha personagem acha aquela lar, com aqueles caixotes, depois é que você vai entendendo. Quando eu fui filmar, eu não sabia. Ela acha uma coruja no material de doação, que depois tá com a Flávia lá na outra história.

Metrópoles: O filme tem sua estreia pátrio agora em Gramado, mas já chega com uma participação premiada no Festival de Berlim. Qual a diferença de expectativa para estes dois momentos?

Fernanda Vianna: A primeira vez é difícil, né? Eu acho difícil de me ver. Mas a gente sabia, a gente estava muito feliz de estar ali. A gente tinha um filme brasílico, de médio orçamento, que quase não terminou, porque acabou o verba no meio, por conta da pandemia e por culpa do movimento político que estava acontecendo. Foi uma surpresa. Agora, vir para cá é uma outra coisa, cá é um lugar de encontro, onde você encontra os seus colegas e é um lugar que você encontra com o público da sua lar.

Bruna Linzmeyer: A experiência de Berlim foi muito emocionante. Enquanto espectadora, eu adoro os filmes que vão para Berlim. O filme foi causando um burburinho quando a gente estava lá. Na primeira sessão, o filme esgotou e depois as outras sessões já estavam esgotadas, já não tinha mais ingresso. Eu e a Mirella, a gente começou a ser reconhecida na rua, em Berlim, e não por brasileiros, por pessoas que tinham observado o filme e que tinham sido impactadas e estavam emocionadas com o filme.

Bruna Linzmeyer e Mirella Façanha em Cidade; Campo - Metrópoles
Bruna Linzmeyer e Mirella Façanha em Cidade; Campo

Fico muito feliz porque esse é um reconhecimento também do cinema da Ju. Um cinema misterioso, que é um cinema estranho, que é um cinema fantástico. Não é fácil estrear um filme comercialmente no Brasil, ainda mais depois da pandemia. Essa dificuldade de ir ao cinema, de levar as pessoas ao cinema. Portanto acho que isso ganha uma força, traz uma força.

Aí a gente passou pelos Estados Unidos e pela América Latina, Colômbia, que tem outro repertório para mourejar com o misterioso, com o ignoto, com esse realismo fantástico que a Ju trabalha.

Metrópoles: Todos que conhecem a Mirella Façanha, atriz brasiliense, ficarão surpresos com a mudança completa de aura, personalidade, força dela nesse filme. Uma vez que chegaram com ela nesse lugar, nessa tradução tão dissemelhante da pessoa tão que é a Mirella?

Juliana Rojas: Eu conheci a Mirella no teatro. Na peça Estou Preto, que é uma peça fantástica, né? Viajou pelo mundo todo. E aí, quando a gente tava num processo de buscar o elenco pro filme, vi um vídeo da Mirella. E era até um vídeo que ela falava em close, e ela olhava pra câmera, e eu achei aquilo muito possante. A presença dela na câmera, a imagem dela, o olhar dela, a entonação. E aí, eu busquei falar com ela, a gente fez uma leitura, convidei ela pro filme.

A Mirella entendeu desde o início também que era um filme que tinha muito de mim. Portanto, eu acho que ela foi percebendo com a sensibilidade dela o registro dessa personagem, que tem muito da minha história. E, pra mim, também foi muito importante, porque é um corpo que é pouco representado nas telas. Até portanto eu não entendia o quanto era importante ter um corpo porquê o meu, assim, um corpo gordo, representando essa personagem num lugar de humanidade.

Geralmente os papéis para pessoas gordas são papéis completamente estereotipados e desumanizados. E foi muito bonito edificar junto com ela. Uma personagem que é complexa, que tá vivendo questões que não têm a ver com o corpo dela, que têm a ver com ela porquê ser humano. Ela tem uma relação amorosa, ela tem pânico, ela tem incertezas, ela tem imperfeições…

Metrópoles: E porquê foi a construção das personagens Joana e Mara?

Fernanda Vianna: A minha pesquisa, a minha preparação, foi ouvir os relatos dos sobreviventes de Brumadinho. De cidades que simplesmente acabaram. Gente que perdeu o pretérito, perdeu tudo, não perdeu só a lar, as roupas, a mobiliário, perdeu as fotos dos ascendentes. Tem gente que fala: “perdi o vestido de himeneu”. Tem uma mulher que fala: “eu tava com o meu fruto no pescoço e a minha outra filha na minha mão. Eu consegui segurar o que tava no pescoço e a minha filha que eu tava segurando na mão, eu não consegui e ela se foi. A dor já é tanta… A partir daí eu construí um pouco essas personagens que eu conheço muito em Minas, que são mulheres muito fortes, que sangram por dentro. E choram pra dentro, o mineiro chora pra dentro, né?

Bruna Linzmeyer: Quando eu leio um roteiro, eu olho. E tem coisas que estão em suspensão, que estão flutuando. E aí eu vou descobrindo na sala de tentativa junto com ela. Nem tudo a gente consegue racionalizar e dar palavras. Nem enquanto atriz, nem eu mesma, principalmente nesse filme. E eu acho isso muito peculiar. Porque eu entrei nos 45 segundos do tempo nesse filme. Eu não tive muito tempo de racionalizar. Portanto eu acho que foi uma personagem que eu entreguei muito meu coração. Foi muito afeto, foi muita crédito, muita fé no trabalho da Sarah, da Juliana e da Miriam, que me receberam muito muito.

Na cena de dança, eu achei que a Ju ia mandar um filme sueco dos anos 40, de uma dança específica. E ela falou: “Magali da Carioca e Carreta Furacão”. São movimentos muito específicos e muito pop. São movimentos populares, movimentos da rua, movimentos que emergem da cidade. E um pouco desse corpo cansado do trabalho, com uma raiva e um cansaço do trabalho. O movimento de capinar, o movimento de levantar um balde. A Ju fala muito de trabalho, desse labor nos filmes dela.

Metrópoles: Falando da presença desses corpos na tela, porquê foi o processo de conseguir a música Temporal de Paixão pra uma cena tão marcante?

Juliana Rojas: É, eu tenho uma relação afetiva com o universo do sertanejo. Eu sou do interno de São Paulo, de Campinas, que tem muito possante essa cultura da música sertaneja. A minha puerícia, pré-adolescente, quando eu estava crescendo, foi um momento muito possante do Chitãozinho & Xororó e do Leandro e Leonardo. E essa música Temporal de Paixão marcou a minha puerícia. É uma música que desperta sentimentos. Ela é muito passional, extravasante, ela explode, ela tem efeito sonoro de chuva. Eu acho ela narrativamente muito interessante e eu queria isso para a cena. Uma cena desse parelha de mulheres que está no campo, nesse lugar que é novo para elas e hostil.

Para mim era muito importante edificar a relação delas que mostrasse o paixão, que tivesse tesão, que tivesse prazer, que esses corpos estivessem na tela, podendo ter esses sentimentos que geralmente não são representados. E aí eu queria que fosse uma música que tivesse esse sentimento e acho que casou muito com a sequência.

Bruna Linzmeyer: Ela é a última cena feliz desse parelha, antes de tudo inaugurar a ruir. Portanto a gente vem numa construção de afeto, de intimidade, de um grande paixão. Elas estão se divertindo ali fora e aí elas transam e dormem de conchinha e aí o mundo começa a desmoronar. Portanto acho que ela tem uma função dramática. Eu acho que ela tem uma função dramática muito importante, interessante, de a gente firmar a união dessas duas personagens antes que a quebra aconteça.

Eu, a Ju e a Mirella, construímos essa cena junto com a Alice Drummond, que é a fotógrafa. Portanto a gente pensou em cada uma das posições, em cada um dos frames, em onde a câmera ia estar, que ângulo ia pegar. O que significava cada uma daquelas posições. Dos nossos corpos, o meu corpo e da Mirella. Eu acho que a gente quase não viu cenas porquê essa, dessa forma, com esses corpos, dessa maneira. E para a gente conseguir imaginar e se ver e se relacionar com isso, a gente precisa às vezes poder imaginar. E a gente só imagina quando a gente vê, né?

Metrópoles: Além do que está na tela, que vem com muita incerteza sobre o horizonte destas personagens, vocês vislumbram qual seria o horizonte delas?

Juliana Rojas: A gente trabalha muito a gênese. O histórico das personagens, porquê as personagens se conheceram. A gente trabalhou bastante esse sentimento de elas estarem vivendo um apocalipse. Uma transformação na vida delas e num mundo em que também não se sabe o que vai sobrevir. E delas fazerem essa escolha de estarem juntas e se amarem e enfrentarem isso. E verem o que acontece depois do termo. O que importa é esse momento final e essa escolha delas fazerem isso juntas.

Fernanda Vianna: A Joana consegue estar pronta pra vida, para as mudanças que a vida vai propor, que propõe a todos nós. Ela acha o pavimento dela pra poder caminhar, seja lá onde for. Pra onde ela vai não interessa muito, mas ela tem um pavimento.

Bruna Linzmeyer: Para mim, o filme fala também sobre o termo do mundo. O termo do mundo que a gente está vivendo. Está em curso. Ele não está daqui a pouco. Ele está acontecendo nesse momento. E eu acho que eu respondo com uma fala da Mara, que é uma das falas que eu mais senhor: “se a gente está vivendo um termo, o que que vem depois?”

Existem muitas culturas que não acreditam no termo porquê um termo finito. Mas nos fins. Uma coisa finda e outras que surgem a partir dali. Portanto, eu acho que é isso que acontece com a Mara e com a Flávia, né? Elas têm um termo e elas vão descobrindo o que que vem depois dele. Não desmoronar perante o termo, mas sustentar o termo.

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