“Palhaço malogrado”, Ariano Suassuna dizia que gostava de rir e de fazer rir
O dramaturgo paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) nunca saiu do Brasil. E não foi por falta de vontade. Se pudesse, teria ido a Portugal – “o único país da Europa que tem o bom siso de falar português”. Só não foi porque Portugal fica na Europa. “Se ficasse em Alagoas, teria ido”, completava, engraçado. Ariano não gostava de viajar. De coche, ônibus ou avião. “Na estrada, você tem um buraco cá, outro ali. No firmamento, não; onde quer que você vá, o buraco vai embaixo”, queixava-se. Certa ocasião, entrou em um avião, sentou-se em sua poltrona e quase desmaiou ao ler: “Para flutuar, use o assento”. Revoltado, chamou a comissária de bordo: “Não vim cá para nadar, não. Vim cá para voar”. Em seguida, reclinou a poltrona para tirar um cochilo. Deu de faceta com outro aviso agourento: “Bolsa para sobrevivência na selva”. “Só existem dois tipos de viagem de avião: as tediosas e as fatais”, classificava, gaiato. “Viajar de avião é tão ruim que a gente reza para a viagem ser tediosa”.
Se Ariano Suassuna nunca colocou os pés fora do Brasil, o mesmo não se pode manifestar de seus personagens. Dois dos mais famosos, João Grilo e Chicó, já percorreram os quatro cantos da Europa. Sua obra mais famosa já foi adaptada, entre outros idiomas, para o inglês, espanhol, italiano, gaulês, germânico, holandês e polonês. Ariano escreveu O Auto da Compadecida (1955) a partir de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, mica de O verba, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918); A história do cavalo que defecava verba, obra anônima registrada por Leonardo Mota (1891-1948); e O penalidade da soberba (1953), do próprio Ariano. Já Chicó foi inspirado em um Chicó de verdade, que ele conheceu em Taperoá, a 216 quilômetros de João Pessoa. “Palato muito de mentiroso, doido e palhaço”, dizia. “Há moca com asas e moca com cornos. Não paladar do mentiroso que mente para prejudicar os outros. Palato do mentiroso que mente por paixão à arte de mentir”.
Entre outras histórias, Ariano Suassuna gostava de repetir a de um velho companheiro dramaturgo que, um dia, decidiu visitá-lo em sua mansão quando ainda estava escrevendo, lá no comecinho dos anos 1950, sua peça de maior triunfo. “A história se passa onde?”, quis saber a visitante. “No sertão da Paraíba”, respondeu o anfitrião, sentado avante da máquina de grafar. “Tem seca?”, perguntou um. “Tem!”, respondeu o outro. “E cangaceiro, tem?”, tornou a perguntar um. “Também tem!”, voltou a responder o outro. “Rapaz, ninguém aguenta mais isso não!”, decretou o visitante, balançando a cabeça com ar de reprovação. “Contratempo o meu!”, deu de ombros o proprietário da mansão. Não satisfeito, o inconveniente prosseguiu o interrogatório: “Uma vez que é o nome dos personagens principais?”. “João Grilo e Chicó”, respondeu Ariano, já demonstrando impaciência. “E uma vez que vão transcrever isso no exterior?”, voltou a perguntar o indesejado. Ariano perdeu as estribeiras: “Eu sei lá, rapaz, uma vez que vão transcrever isso no exterior! Sou um repórter brasiliano. Eu escrevo para o meu povo!”.
“Divido a humanidade em duas categorias: os que concordam comigo e os equivocados”
Em quase 70 anos, “o texto mais popular do moderno teatro brasiliano”, uma vez que diria o crítico Sábato Magaldi (1927-2016) em 1962, já foi adequado para o cinema e para a TV. Nos palcos, a história de João Grilo e Chicó foi encenada pelo menos seis vezes: quatro no Brasil e duas no exterior. Por cá, encantou plateias de Pernambuco, em 1956; do Rio de Janeiro, em 1975; da Paraíba, em 1976; e de Santa Catarina, em 1999. Lá fora, da França, em 1971; e do Paraguai, em 1999. No cinema, arrancou gargalhadas em duas adaptações: A Compadecida (1969), de George Jonas (1935-2016); e Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), de Roberto Farias (1938-2018). Os atores Armando Bogus (1930-1993) e Antônio Fagundes interpretaram João Grilo e Chicó na primeira versão e os humoristas Renato Aragão e Dedé Santana, o Didi e o Dedé do quarteto mais famoso do Brasil, na segunda. Na TV, O Auto da Compadecida virou microssérie em quatro episódios, escrita por Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão e dirigida por Guel Arraes. A dupla foi interpretada por Matheus Nachtergaele e Selton Mello.
Guel conta que conheceu Ariano ainda menino, no Recife. Seu pai, Miguel Arraes (1916-2005), era vizinho de porta de Ariano. Já adulto, tomou coragem e disse: “Um dia, gostaria de apropriar O Auto da Compadecida”. Na mesma hora, o dramaturgo prometeu: “Vou zelar para você!”. Dez anos depois, Guel perguntou se poderia pegar emprestado temas de outras obras, uma vez que Torturas de um coração (1950) e O santo e a porca (1955), também de Ariano. “Faça uma vez que quiser”, concordou. “No primeiro dia, Ariano assistiu ao incidente no quarto. No segundo, foi para sala. No terceiro, chamou os amigos…”, recorda o diretor. O Auto da Compadecida (1999) fez tanto sucesso que, em 2000, foi adaptada para o cinema e, 25 anos depois, ganhou prolongação, O Auto da Compadecida 2, que estreia em 25 de dezembro. “Ariano rompeu com o estereótipo do nordestino triste ou do sertanejo sofrido. A memorandum mais potente é a de um engraçadíssimo contador de histórias”, explica Guel Arraes.
“Todo dia eu invento um sonho dissemelhante para sonhar”
Muitas dessas histórias foram contadas e recontadas nas aulas-espetáculo que dava pelo Brasil afora e, dez anos depois de sua morte, ainda fazem sucesso no YouTube. Uma vez que a vez em que quase voltou da porta de um escola no Recife ao se deparar com a termo “aula-show” em uma fita de boas-vindas. “Não dou aula-show. Dou aula-espetáculo. Xô, na minha terreno, é interjeição de espantar penosa!”, explicou. Noutra ocasião, admitiu que só se tornou jurista por falta de opção. “No meu tempo, se o sujeito soubesse fazer conta de somar, seria engenheiro. Se gostasse de perfurar ventre de lagartixa, seria médico. Uma vez que eu não sabia fazer nem uma coisa nem outra, me formei jurista”, divertia-se. Mas, a passagem mais famosa é a da filarmónica Calypso, formada pela cantora Joelma e o músico Ximbinha. Ariano ficou revoltado ao ler, em uma material do jornal Folha de S. Paulo, que o guitarrista era “genial”. “Se eu gasto um adjetivo desses com o Ximbinha, o que vou manifestar do Beethoven? Vou ter que inventar outra termo!”.
Enamorado pela cultura popular brasileira, Ariano Suassuna não economizava críticas ao que chamava de “lixo cultural”, uma vez que rock, funk ou punk. Quando adaptou O Auto da Compadecida, Guel Arraes sabia, por exemplo, que não poderia usar guitarra elétrica em sua trilha sonora. Em suas aulas-espetáculo, sobrava para todo mundo: Michael Jackson, Mickey Mouse, The Rolling Stones... Ironizava até os nomes americanizados. Certa noite, terminada uma aula-espetáculo, algumas pessoas fizeram fileira para pedir autógrafo e tirar retrato. “Qual é o seu nome?”, perguntou Ariano. “Wheydja”, respondeu uma moça. “Uma vez que se soletra?”, indagou o responsável. E ela soletrou. Em seguida, veio outra. “E o seu?”, voltou a perguntar. “Whemytt”, respondeu. “Você é mana da Wheydja?”, quis saber o responsável, entre o curioso e o engraçado. “Ué, uma vez que o senhor adivinhou?”, espantou-se a jovem. Na sequência, um rapaz, de livro na mão, se apresentou: “Meu nome é Hugo. H-u-g-o!”, soletrou. “Esse daí, coitado, deve encontrar que eu sou iletrado!”, gracejou Ariano, para si mesmo.
A jornalista Adriana Victor assistiu a dezenas de aulas-espetáculo de Ariano Suassuna. Uma delas dentro de um presídio feminino. Outra no meio da rua. “Belém de São Francisco não tinha teatro. A cidade parou para testemunhar à lição de um senhor de mais de 80 anos à extremidade do rio”, recorda Adriana que conheceu Ariano na Universidade Federalista de Pernambuco (UFPE), onde ela estudava Jornalismo e ele lecionava estética. Anos depois, já formada, pediu serviço ao logo secretário de cultura de Pernambuco. Adriana trabalhou uma vez que assessora de Ariano de 1995 a 1998, no governo Miguel Arraes, e de 2007 a 2014, no governo Eduardo Campos. “Ariano Suassuna era movido a sonhos. Costumava manifestar: ‘O que seria do varão se não tivesse um sonho para levá-lo adiante?’”, relata a autora do livro Ariano Suassuna – um perfil biográfico (Jorge Zahar, 2007), em parceria com Juliana Lins.
Ariano Suassuna não é responsável de um livro só. Além de O Auto da Compadecida, assinou incontáveis obras, uma vez que Uma mulher vestida de Sol (1947), O santo e a porca (1955) e Romance d’A pedra do reino e O príncipe do sangue do vai-e-volta (1971). O diretor Luiz Fernando Roble adaptou três delas para a TV Mundo: Uma mulher vestida de Sol (1994), A farsa da boa preguiça (1995) e A pedra do reino (2007). “Ariano se autodefiniu, ao longo de sua vida e obra, uma vez que um repórter barroco”, explica Bráulio Tavares, roteirista de A farsa da boa preguiça e A pedra do reino e responsável de ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007) que viu Ariano pela primeira vez em uma lição da Universidade Federalista da Paraíba (UFPB), onde estudou Ciências Sociais, no Teatro Municipal de Vargem Grande. “Trazia dentro de si contradições quase inconciliáveis. Isso lhe possibilitou produzir uma obra que serve de interface entre o popular e o erudito, o rústico e o urbano, o tradicional e o moderno”.
“Não sou otimista nem pessimista. O otimista é ingênuo e o pessimista, amargo. Sou realista esperançoso”
Nascido no dia 16 de junho de 1927, Ariano Vilar Suassuna era o oitavo de nove filhos de João Urbano Pessoa de Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar. Quem vê o repórter rindo e fazendo rir com o “palhaço malogrado” que trazia dentro de si não imagina a puerícia triste que teve. Aos três anos, seu pai, logo deputado federalista, foi assassinado a tiros por um pistoleiro, Miguel Alves de Souza, no Rio de Janeiro. Aos cinco, sua família perdeu quase todo o manada da rancho Acahuan, no município de Sousa, a 432 quilômetros de João Pessoa, por culpa da seca. “Minha mãe ficou viúva aos 34 anos”, relata ao Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles (IMS), de 2000. “Se quisesse dar um desprazer à minha mãe, era só chegar perto dela se lamuriando da vida”. Para nenhum dos filhos querer se vingar da morte do pai, Rita de Cássia dizia que o matador tinha morrido. Ariano só descobriu que o matador de seu pai estava vivo perto de completar 50 anos.
Do pai, Ariano herdou a livraria. Foi lá, ainda garoto, que descobriu, entre outros clássicos da literatura universal, Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas (1802-1870), e Scaramouche (1921), de Rafael Sabatini (1875-1950). “Na puerícia, tive dois encantamentos: a literatura e o circo”, repetia. “Quando perguntam se tenho o hábito da leitura, respondo que não: tenho paixão! Quanto ao circo, bastava alguém manifestar que o circo chegou na cidade que o meu mundo já ficava melhor”. Em 1957, aos 30 anos, se casou com Zélia de Andrade Lima. O parelha teve seis filhos e quinze netos. “A sensação que tenho é que, depois que conheci a Zélia, minha espírito se desatou”, explica no livro ABC de Ariano Suassuna, de Bráulio Tavares. “Minha espírito vivia trancada com um nó cego e ela desatou esse nó”. Dois anos depois, comprou, com os direitos autorais de seus livros, um casarão no bairro da Lar Potente, no Recife, onde viveu até o último dia de sua vida.
“O ser humano só tem duas saídas para enfrentar o trágico da existência: o sonho e o riso”
Ariano Suassuna foi eleito para a Liceu Brasileira de Letras no dia 3 de agosto de 1989 e tomou posse no dia 9 de agosto de 1990. Às vésperas da eleição, recebeu um telefonema do logo presidente da ABL, Marcos Vilaça, avisando que nenhum outro repórter se dispusera a participar da disputa pela cadeira 32, que pertencia a Genolino Estremecido (1902-1989): “Você vai ser candidato único. Uma eleição tranquila”, garantiu o acadêmico. “E você acha isso bom? E se eu perder para ninguém? E se eu não atingir o quórum?”, rebateu Ariano, preocupado. “Minha família é ruim de urna. Desde 1930, ninguém vence uma eleição”, fez perdão. Curiosamente, Ariano venceu mais duas: em 1993, para a cadeira 18 da Liceu Pernambucana de Letras e, em 2000, para a cadeira 35 na Liceu Paraibana de Letras. “Se, ao publicar o livro, eu tiver triunfo junto ao público, tanto melhor. Mas, o fundamental é o ato de grafar”, afirmou, em 2000. “A literatura é a minha sarau. É ali que eu toco e danço”.
“O Ariano dramaturgo é, a meu ver, tão genial quanto o poeta ou o prosador. Isso é um pouco vasqueiro de intercorrer”, avalia o repórter Carlos Newton Júnior, responsável pelo lançamento de diversos títulos do responsável, uma vez que A história do paixão de Fernando e Isaura (2019), A pensão de Dona Berta e outras histórias para jovens (2021) e O prófugo de princesa (2022), todos pela Editora Novidade Fronteira. “Há autores que são excelentes no romance, por exemplo, mas, ao enveredarem por outros gêneros, não conseguem atingir a mesma qualidade. Sua obra aborda temas universais e supratemporais, vistos, porém, sob uma ótica sítio. Por isso, não envelhece nunca”.
Ariano Suassuna morreu no dia 23 de julho de 2014, aos 87 anos, vítima de uma paragem cardíaca. Estava internado em um hospital da capital pernambucana depois de tolerar um acidente vascular cerebral (AVC) dois dias antes. João Suassuna é um dos 15 netos do repórter. O mais velho deles. Os dois estiveram juntos na tarde do dia 21, uma segunda-feira. “Naquele dia, almoçamos juntos. E, uma vez que de rotina, conversamos demais. Meu avô era muito engraçado e comunicativo”, recorda João, que gostava de testemunhar aos jogos do Sport Club do Recife na Ilhéu do Retiro, em companhia do avô. “Terminado o almoço, ele me deu um amplexo e pediu: ‘Meu fruto, se puder, volte à noite para a gente terminar nossa conversa’. À noite, eu voltei, mas cheguei retardado e não encontrei mais meu avô em mansão. Ele tinha pretérito mal no jantar e levado às pressas para o hospital. Dois dias depois, se encantou. Os gigantes não morrem, eles se encantam”.
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